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A noite em que o mundo desabou

Imagem: Instagram @nelsanespolo

O mês de maio já carregava um simbolismo forte para nossa comunidade. Foi em maio de 1996 que fundamos a Cooperativa Univens, com 35 mulheres da comunidade que tinham em comum a busca por gerar renda digna para suas famílias. A nossa história sempre foi de superação. Mas nada poderia nos preparar para o que aconteceu na noite de 4 para 5 de maio de 2024. 

Há quase um mês, vínhamos acompanhando as chuvas fortes que atingiam o estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre ainda parecia distante das imagens de destruição que víamos nas demais regiões do estado. Até que já não era mais.

Naquele dia 4, a Vila parecia um filme de fim do mundo. As pessoas andavam desnorteadas pelas ruas, olhando para o céu, olhando para o arroio da Chimarrão que contorna nossa comunidade, acreditando que a água viria por ali. Mas não. A água começou a subir pelas caixas de esgoto, pelos bueiros, invadindo as ruas pelo lado da Av. Assis Brasil, e não do arroio, como todos imaginavam.

O desespero tomou conta. Muitos moradores receberam ligações de familiares que já percebiam a gravidade da situação e orientavam: “Saiam de casa agora!” Na noite do dia 4 para o dia 5 de maio, a Vila foi tomada pela água que subiu rápida e implacável. A sensação era a de estar em um verdadeiro filme de terror — ruas alagadas, casas invadidas, e a incerteza tomando conta dos corações.

Muitas famílias saíram de suas casas apressadamente, levando apenas o essencial; outras saíram apenas com a roupa do corpo para buscar refúgio nos poucos abrigos disponíveis ou em casas de parentes, amigos ou simplesmente conhecidos que abriram suas portas para acolher quem estivesse precisando. Nossa comunidade, em sua grande maioria, foi para a casa de amigos, conhecidos e parentes. Mas todos saíram com pouquíssimos pertences, acreditando que tudo aquilo duraria apenas uma noite, talvez duas. Levaram poucas roupas, quase nada.

Ninguém imaginava o que estava por vir. O território que sempre foi símbolo de participação e resistência viu-se diante de uma devastação sem precedentes. Quando deixamos nossa casa por uma ameaça, temos a sensação de deixar para trás um pedaço de vida e, numa incerteza infinita, nos falta o chão, nos sentimos tão vulneráveis.

Me lembro como se fosse hoje: ao cair da tarde do dia 4, a Vila foi silenciando, restando poucos moradores. Já à noite, ouviam-se os gritos por pedido de resgate. De forma voluntária e muito solidária, homens e jovens improvisaram barcas para resgatar os que ficaram para trás. Pessoas e animais. Já não era possível caminhar pelas ruas, os barcos é que circulam. O território se tornara irreconhecível, pois seus limites e seu povo haviam se deslocado, mas todos tentavam ajudar como podiam. Os barcos que circulavam na Vila e na cidade eram de nossa Vila, de outras Vilas, de outras cidades e também de outros estados. Foi uma noite de muita dor, medo e incerteza. Qual seria o limite dessas águas? Até quando ficariam?

No dia 5, quando amanheceu, a água já tinha tomado conta da vila. A água era uma mistura de terra, lixo de todo tipo, óleos e bichos mortos de toda espécie — aqueles que ficaram presos, que não puderam ser resgatados. Tudo isso se misturou aos alimentos que estavam nas casas, às roupas e objetos pessoais. Na água ficou um pouco de cada um, e um pouco de todos nós.

E por cerca de vinte dias, essa foi a realidade da Vila. Em algumas partes, por mais de um mês. Água parada. Suja. Contaminada. Água que chegou a dois metros de altura em algumas casas. Muitos que tinham um segundo andar puderam ficar, mas sem luz, sem água potável, sem geladeira ligada. E, principalmente, com medo. Medo de perder não só o que estava dentro das casas, mas também aquilo que não se compra: segurança, paz, dignidade.

Foi um dos dias mais tristes da nossa história. E sabíamos, desde aquele momento, que nossa vida nunca mais seria a mesma. A Vila, que antes era um espaço de convivência, trabalho e celebração, transformou-se em um cenário de abandono e perda. A ausência de luz elétrica por semanas agravou ainda mais a situação dos que ficaram e, no entanto, todos tinham compreensão do perigo que correriam se essa luz fosse ligada. E a água? Parece estranho constatar que nossas casas e ruas estavam tomadas pelas águas, enquanto todos sofriam com a sua escassez, porque a que tínhamos disponível não era confiável.

Mas no meio da dor, algo se ergueu: a solidariedade.

Na manhã de segunda-feira, dia 6, reunimos as associadas da cooperativa Univens. A água não chegou a invadir a sede, cobriu a calçada, mas não entrou. E interpretamos isso como a mão de Deus a segurar a água, era um sinal: “A cooperativa vai ser o centro de acolhida, solidariedade e resistência da comunidade.” Um ponto de recepção e distribuição de doações.

Nos tornamos ponto de apoio, cadastrando moradores, recebendo e distribuindo doações. Nossa tarefa não foi só a de receber — mas de organizar, buscar, sensibilizar e fazer as entregas, criando critérios para que toda ajuda possível pudesse chegar às vítimas diretas e indiretas, sempre acolhendo e reconstruindo a dignidade das pessoas.

O apoio chegou de muitos lados: Instituto Koinós, Unisol RS, Bela Gula, Sindicato dos Metalúrgicos de PoA, CUT, Sindicato dos Bancários, a Aldeia SOS, Fundação Gerações, Defesa Civil, Banco de Alimentos, Instituto IP, Cora, Prefeitura de Erechim, Tênis Veja, Ministério da Reconstrução, Exército Brasileiro, Correios, ADECE/Ceará, Cooperativa Açai, Fundação Banco do Brasil, Cozinhas comunitárias —D. Lucia, da Morena, das Pretas, Fome tem pressa, da Katia —, Secours populaire Français, Ong Moradia e Cidadania, Caritas Regional, Fundação Luterana, Cruz Vermelha, Sicredi, Instituto Renner, Frei Luciano do lar da Criança, além de dezenas de pessoas físicas de Porto Alegre, de todo o estado e do Brasil.

Graças ao trabalho voluntário, criamos um sistema de cadastro a partir do qual mapeamos as ruas atingidas das quase 1.200 famílias de nossa comunidade. Os primeiros itens a chegar foram materiais de higiene: escovas de dente, shampoos, absorventes. Depois, vieram as cestas básicas, materiais de limpeza, roupas, colchões e água potável — esta trazida pelo Exército, através dos Correios.

Cada entrega era um gesto de cuidado. Cada cesta, um abraço. Cada par de tênis, uma injeção de dignidade. Foram doados 4 mil pares de tênis novos, distribuídos conforme o tamanho de cada pessoa, desde o tamanho 20 até 45. Foi entregue pelo menos um par por membro das famílias, o que só foi possível por meio do cadastro construído. Este foi se complementando, e conseguimos mapear com detalhes o perfil das pessoas de nossa comunidade — por exemplo, quantas crianças, jovens, adultos e idosos habitam o território.

Imagem: Instagram @nelsanespolo

A comunidade respondeu à altura. O que se viu aqui foi um exército de voluntários e vizinhos que estavam sofrendo a dor da perda, juntamente com outros que não haviam sido diretamente atingidos. Passamos dias e dias separando, carregando, montando cestas, distribuindo. Uma corrente de amor e solidariedade que jamais será esquecida. Foram semanas de trabalho duro, mas também de encontros, de cuidados, de abraços apertados. Os relatos de moradores que perderam seus bens, suas histórias e até mesmo familiares, são testemunhos de dor, mas também de resistência. Entregar um colchão novo, um fogão, um par de tênis no tamanho do pé, um pacote de fralda, água, alimento, roupa, guarda-roupa, cozinha, cama, lençóis, cobertor, tinta, jarra elétrica — não se tratou apenas de doar um objeto, mas de devolver dignidade e esperança.

A última doação realizada ocorreu no dia 4 de outubro de 2025, quando entregamos tintas para que os moradores encontrassem esperança em suas casas revitalizadas. 

Também nos engajamos na luta para que a Prefeitura Municipal desassoreasse nossas redes de esgoto, e fechamos a rua Bernardino Amorim com uma caminhada dos moradores — e assim conseguimos esse serviço.

Quanto a mim, foi tanta dedicação neste período todo que ainda não consegui viver o luto de tudo o que aconteceu. A água na minha casa chegou a 70 centímetros e permaneceu por vinte dias, e posso afirmar: nenhuma outra experiência impactou tanto os meus laços de humanidade e comunidade. É uma trajetória de luta, resistência a solidariedade, de uma comunidade da qual tenho muito orgulho de fazer parte.

Ainda falta muito, porque, a infraestrutura das casas e ruas da Vila ainda não se recuperou, tampouco as pessoas. Por isso, continuaremos buscando tudo o que que for possível para que ninguém perca a esperança. Queremos seguir com campanhas de doação de tintas para as casas, mudas de flores, alimentos saudáveis, além de promover cursos de qualificação e ações na área da cultura. Se aprendemos algo com essa tragédia, é que estar em comunidade dá outro sentido à vida e ameniza as dores do dia a dia.

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